“Como era possível que nesse lugar nascessem crianças?”


“Como era possível que nesse lugar nascessem crianças?” A pergunta, como um eco na minha cabeça, faz o coração ficar apertado diante das salas minúsculas e das descrições das circunstâncias em que as pessoas eram tratadas ali. E eu repito, a cada passo: como é possível que nesse lugar nascessem crianças? 

Esse lugar é o ex “Casino de Oficiales”, prédio da ESMA (Escuela Mecánica de la Armada) um centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura argentina (1976-1983). 

O chão do corredor foi feito mais tarde - quando o lugar se tornou uma espécie de museu - com madeira para que passassem os visitantes. Mas as pequenas salinhas, ainda conservam o piso da época. Dentro de cada uma é possível ver depoimentos, cartas, bilhetes e desenhos das vítimas. Além disso, se você começa a pensar um pouquinho em tudo aquilo, consegue ver muito mais. 

Eu vejo que o chão cinzento está molhado. São lágrimas demais. De desespero, de dor, de incerteza, de saudade, de medo. E tem olhos sem esperança me olhando, gritando no silêncio mais alto e doloroso por socorro. Eu morro por dentro. 

No fim do corredor tem uma criança sendo levada. E uma mãe perdendo um pedaço seu, perdendo tudo que tem naquele momento. 

Há gritos abafados. As paredes descascadas estão manchadas de sangue. Alguém está golpeando as costas de um homem. Alguém está batendo forte na minha cabeça. Alguém golpeou o meu estômago. O meu grito interno de socorro, por todas as vítimas, é tão forte que me ensurdece. Eu não escuto mais nada. Quero a saída. Quero fugir como aquelas mulheres não puderam. Como todas as pessoas torturadas e mortas ali não conseguiram. 

Antes de sair, ainda consigo ler rapidamente: “capucha [tipo de divisão muito pequena onde os presos ficavam] é um lugar que cheira morte”. Mas a memória dali também é a morte. Você vê a morte. Você a sente. Você pede, implora, no seu desejo mais profundo, que aquilo continue sendo apenas memória, que jamais seja uma realidade novamente. 

Mais intimamente ainda, você deseja que tudo aquilo seja apenas um sonho, que não tenha existido. Mas o choro das pessoas ainda ecoa na sua mente e você sabe que é verdade. Que, às vezes, não dá para fugir daquilo que o homem é: um gigantesco poço de desumanidade.

Ideologia nenhuma vale horrores como esses. Quando pensar que algo desse tipo possa ser a solução para os problemas, se coloque assim, no lugar de alguém que viveu na pele o que é a repressão. Se sua alma não se encher de dor, ela não existe.

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